Curadoria musical e mulheres no mercado de trabalho da música e do radialismo
Entrevista por Val Becker (RJ) – Rádio Graviola
Marta Schmitt é radialista com formação em música. Atua na FM Cultura 107,7 de Porto Alegre como programadora musical há mais de 20 anos. Faz a curadoria do ‘Cultura Clube’, produz e apresenta o ‘Contemporânea’ e faz o bloco local do Antena Mec, em rede com a Rádio Mec do RJ, com entrevistas de artistas do sul. Ênfase na música brasileira, música instrumental, produção contemporânea e atuação de mulheres na música.
Tem realizado a cobertura de festivais como o Pelotas Jazz Festival, Festival de Música de Itajaí, Festival Unisinos e 7º Prêmio Profissionais da Música de Brasília.
Mestrado em música pela UFRGS, com ênfase na pesquisa sobre o rádio na formação musical. Em 2008 lançou o livro “Clube do Guri: a história de um dos maiores sucessos do rádio gaúcho das décadas de 50 e 60”, programa onde Elis Regina iniciou sua trajetória musical.
Integrou o júri do Prêmio Açorianos de Música de Porto Alegre. Em 2020 participou da equipe de curadoria do Projeto Unimúsica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, “Forrobodó”, edição dedicada às mulheres instrumentistas.
Integrante do Radialivres, Coletivo de Radialistas do Brasil.
É colaboradora do programa ‘É tudo Brasil’, da Rádio Nacional do RJ, Rede EBC, destacando a cena musical da Região Sul.
Em 2023, integrou o Conselho Sensorial do Prêmio Profissionais da Música de Brasília e a equipe de jurados do Edital Ecarta Musical, da Fundação Ecarta RS.
Instagram: @martaradio2019
Perguntas e Respostas
1- Marta, gostaria de abordar dois assuntos com você. O primeiro, fala de curadoria musical. Você que trabalha há mais de 20 anos como radialista, que mudanças percebeu no cenário da divulgação de artistas ao longo desse tempo? Como você vê a possibilidade, hoje em dia, de execução pública de artistas independentes, tanto em emissoras públicas, quanto comerciais. Se houve mudanças, claro!
R: Eu percebo uma mudança gigante não só no cenário da divulgação, mas também na minha atuação no rádio. Na real, são mais de 30 anos nesta jornada e ainda sinto aquele friozinho gostoso na barriga antes do “ao vivo”. Comecei na FM Cultura em 1990 como “freelancer”, fazendo programação de música erudita. A Cultura recém havia sido inaugurada, e se espelhava na grade da Cultura FM de São Paulo, com ênfase na “música de concerto”. Nessa época, meus contatos eram com as rádios internacionais, a Deutsche Welle, a Netherlands e Swiss International, que enviavam pelo correio fitas rolo e fitas cassete com gravações das suas próprias orquestras, num repertório que ia do barroco à música de vanguarda, conteúdo da cena local europeia (rs). Aos poucos fui migrando para o onde meu coração pulsava mais forte, a música popular, que eu cresci ouvindo em casa com meus irmãos mais velhos. Comecei a rodar a MPB que meus colegas da FM Cultura conheciam tão bem, dos clássicos aos os selos independentes; rodar o rock local que tocava desde os anos 80 na Rádio Ipanema, pela atuação pontual de radialistas como a Katia Suman; rodar Lp’s como o Juntos, do Nelson Coelho de Castro, precursor do financiamento coletivo aqui do sul; rodar os CD’s que começaram a chegar na rádio por volta de 1995, resultado de política pública inovadora, o Fumproarte, edital da prefeitura, que viabilizou demais a cena de Porto Alegre; e rodar música feita “ao vivo”, um luxo só, uma volta aos anos dourados deste veículo centenário, tão querido por todos nós. Hoje, a conexão do rádio com a cena independente se fortalece dia a dia, com a produção musical feita nos estúdios locais em alta performance, com valores mais acessíveis. Uma conexão que se intensificou ainda mais através das redes sociais, whatsapp e plataformas de streaming, dando visibilidade às produções de todos os cantos do planeta, aproximando artistas e público, possibilitando acompanhar de “pertinho” processos criativos e estéticos. Estes novos canais de ser e estar no mundo tem possibilitado uma programação musical muito mais diversa, criativa e potente, tanto em rádios comerciais quanto públicas. Só depende da curadoria, da atitude, da vontade de querer estar conectada com seu público e em sintonia com seu tempo, sua cidade, de garantir espaço para a multiplicidade e diversidade de linguagens e estilos musicais espraiados por todo este país. Viva a Música Brasileira! Viva o Rádio, que cresce dia após dia em diferentes formatos, em multiplataformas e cenários diversos.
2- O outro aspecto que eu gostaria de abordar é em relação à participação das mulheres no mercado de trabalho da música e do radialismo. Você acha que está melhor atualmente do que há 20, 30 anos? Está tendo mais espaço para as mulheres atuarem? O dia-a-dia nos estúdios está mais suave ou o machismo ainda impera e a luta pela conquista de espaço ainda é grande?
R: Sem dúvida, as mulheres estão mais presentes no mercado da música e do radialismo, mas ainda muito invisibilizadas, muito nos bastidores. É um processo histórico que vem modificando muito lentamente. Eu acho que nos últimos anos tem surgido coletivos femininos na produção musical que tem impulsionado carreiras e feito com que as mulheres se reconheçam mais como compositoras e instrumentistas, atuação majoritariamente masculina. Aqui no sul, por exemplo, coletivos como o “Peitaço da Canção Regional”, projeto “Concha”, o selo “Pedra Redonda”, o grupo de pesquisa “Sônicas” da UFRGS, a Escola “As Batucas”, grupos “As Tubas” e “Líricas Sulinas”, têm aberto muitas frentes, possibilitando uma atuação mais efetiva, instrumentalizando e propiciando uma apropriação deste fazer, em áreas além do cantar, da interpretação vocal, que é um espaço já conquistado e trilhado, de muita importância. O que falta ainda, na minha opinião, é uma mudança de postura, de atitude nas curadorias dos festivais de música, nas pautas das redações, nos Festivais de Oficinas Musicais…. é tão desanimador ver poucas mulheres neste lugar de protagonismo, acho que não chega nem a 10 por cento dos “line-up”, e a gente sabe da potência, da qualidade dos trabalhos que as mulheres vêm produzindo. Mas tem exceções, como Tum Festival, que prioriza este atuar.
Ah, e nos estúdios e redações, sim, a coisa está mais suave, a discriminação não é descarada, e a gente aprende com o tempo, também, a se impor mais, a meter o pé na porta, porque a diferença existe, é estrutural, tá no dia-a-dia. Eu hoje apresento um programa diário no rádio, o Antena Mec, paralelo à minha atuação como programadora musical, porque não tinha mulheres na “latinha”, na 107,7 – apenas em espaços pontuais, no final de semana, um ou outro horário na noite; então, com este programa, juntei duas coisas que eu adoro e que eu acho importante, conversar sobre música com artistas (garantindo espaços) e marcar presença da mulher no dial. Mas tem chegado novas colegas, aos poucos vamos ocupando e “tomando conta”, hehe (brincadeirinha).
3 – Por fim, gostaria que você falasse de como vê a iniciativa de festivais como o TUM, não só para a visibilidade de artistas e troca de experiências, mas para a profissionalização do mercado da música como um todo!
R: O TUM é sensacional, pela diversidade, pela grandiosidade, por trazer gente de praticamente todo o Brasil, e ter esta conexão com a América Latina, tão necessária, tão próxima e tão desconhecida para muitos de nós. Um festival deste porte na região sul tem uma conotação muito importante, saindo do eixo Rio-São Paulo, (um eixo ótimo, claro), mas que descentraliza e traz o Brasil para um outro centro de produção musical, tão rico e diverso. O fato do Tum Festival ter este foco, também, na produção e atuação das mulheres na música, é fantástico. É contemporâneo e está construindo um futuro de equidade de gênero na música, dando condições e garantindo espaço para que mais mulheres sejam protagonistas. Isso tudo é resultado do empreendedorismo feminino, através da idealizadora, produtora e diretora Ivanna Tolotti, que chega à sexta edição, de forma gigante, mostrando competência, conhecimento, descentralizando e trazendo o Brasil, através dos seus agentes culturais, para uma ilha, que de isolada não tem nada. Ao contrário, Florianópolis é plural, é brasileira, é latino-americana, é contemporânea, é central e diversa. É a cadeia produtiva da música em ação, que através de múltiplos encontros, faz pulsar a criatividade, trilhando novas ideias e caminhos, numa infinidade de possibilidades. Vida longa ao TUM FESTIVAL.