Direito e Cultura com Caio Chaim. O Dilema entre Estado e Cultura

Postado em 07/12/2020, 13:38

No artigo de hoje da coluna “Música, Entretenimento e Filantropia”, Caio Chaim analisa a relação de dependência entre Cultura e Estado, na construção dos setores culturais.

No primeiro artigo dessa série, Caio refletiu brevemente sobre a relação entre Cultura, Estado e iniciativa privada, em especial sobre o ponto de vista da filantropia. Se você ainda não leu, recomendamos que confira clicando aqui: https://tumfestival.com.br/2020/11/cultura-entretenimento-filantropia/

A relação entre Cultura e Estado: quanto dependemos dele?

Por Caio Chaim

Para enxergarmos a função e o poder da Filantropia na evolução e desenvolvimento das cadeias de Cultura, precisamos bater um papo mais alongado sobre a relação entre Estado e Cultura. Afinal, qual é, de fato, o papel e a relevância do Estado no desenvolvimento das atividades culturais? O quanto a Cultura depende dele? E para além: devemos depender? É o que tentaremos vislumbrar adiante.

O Estado é o ente recolhedor, gestor e investidor do dinheiro público, cujo orçamento é planejado pelo governo eleito, responsável por escolher quais setores receberão investimentos diretos – no caso da Cultura, através de verbas derivadas de Editais, concorrências públicas, prêmios, concursos, etc. Ao mesmo tempo, é o Estado quem define o teor das políticas públicas e fiscais que determinarão, em grande medida, o destino dos mercados: florescimento, estagnação, sobrevivência ou morte. Em uma primeira leitura desta tese, a reação do leitor talvez seja: ora, esse colunista seria um mega-interventor, defensor de um Estado forte e centralizador, na medida em que ele é compreendido como ente determinante no destino dos mercados? Liberais sem dúvida acenderam o sinal de alerta.

Caio Chaim: músico, ator, advogado, empresário, produtor e filantropo.

Essa questão fica bem mais clara em setores vulneráveis e naturalmente ligados a interesses supra coletivos: educação, saúde, infraestrutura, etc. Nesse ponto, vale uma reflexão sobre a formação de dois setores relevantes da economia brasileira: a indústria automobilística e a da soja. Hoje o principal produto de exportação do Brasil, o segundo maior produtor da semente a nível global, a soja triunfou em grande medida em razão da Lei Kandir (LC 87/1996), legislação que zerou o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre o produto e que vigora até hoje. É evidente que esse e tantos outros benefícios fiscais conferidos às cadeias produtivas da soja criaram as condições para o empreendimento no setor, e em grande medida ainda são responsáveis por sustentar um ecossistema minimamente estável e sustentável do ponto de vista financeiro. 

Já a indústria automobilística dependeu por completo de incentivos fiscais para nascer e se desenvolver. A Volkswagen Brasil surgiu em 1953 em um armazém alugado em São Bernardo do Campo. Com a instituição do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, em 1956, uma série jamais vista de incentivos rendeu ao Brasil a nona colocação na produção mundial de automóveis dez anos depois, em 1964.  Nos anos 2000, em especial no governo Lula, uma nova rodada de benefícios e redução de taxas fiscais gerou uma onda de crescimento e otimismo no mercado automobilístico, que hoje em dia se vê em crise e diante de um paradoxo: mesmo com sua dimensão, não consegue se emancipar do auxílio do Estado, ainda que não diretamente.

É importante destacar que as comparações feitas aqui são superficiais e, portanto, perigosas. As características dos setores cultural, automobilístico e da soja são completamente diferentes, bem como as relações de mercado e consumo. No entanto, entendo que aqui vale a analogia despretensiosa e retórica para enxergar com mais clareza a tendência de que nenhum mercado surge sem ecossistema.

Como se vê, ainda que o assunto seja polêmico, há grande espaço para discutirmos quanto os setores dependem de uma postura pró ativa do Estado. É uma escolha de Estado, a criação de um ecossistema favorável para o florescimento da iniciativa privada, e o ideal é que os setores funcionem por conta própria, emancipados, o quanto antes. No que se refere à postura do Estado brasileiro em relação à Cultura… bom, o mínimo a se dizer é que pro-atividade não é um conceito que se aplica nesse caso.

Ano após ano, os orçamentos federais, estaduais, distritais e municipais são cada vez menores – e não houve um só governo, independente do espectro político, em que vivêssemos em abundância na Cultura. Jamais foi garantido qualquer nível de estrutura e estabilidade para o empreendedor cultural. Imagine se o mercado de tecnologia não contasse com uma série de vantagens e cláusulas “café com leite”, a exemplo da cláusula de “safe harbour” instituída no Digital Millenium Copyright Act, primeira lei de Direito Autoral terráquea, aprovada nos Estados Unidos em 1998. A cláusula retira qualquer responsabilidade das plataformas provedoras de conteúdo por eventuais violações a direitos autorais cometidas em suas redes. Significa dizer: se essa cláusula não existisse, o próprio Youtube e Google deveriam cifras astrônomicas em direitos autorais. Esses riscos não são suportados por ninguém: sem a cláusula de safe harbour, nenhum empreendedor teria arriscado criar um Youtube. Se tivesse, provavelmente seria engolido por um ecossistema hostil.

Tudo isso me faz pensar em uma conversa informal que tive com um dos líderes e gestores de uma das maiores bandas de Brasília das últimas décadas. Essa banda viveu grande parte da sua trajetória dependendo de verbas advindas do Fundo de Apoio à Cultura – FAC do Distrito Federal, principalmente para circular – a banda é numerosa e sabemos que isso é um problema sério de logística. Nessa ocasião, ele destacou que a dependência de fomento governamental tornou-se quase como um vício implacável: depois de um tempo tudo necessitava de fomento estatal e nada era resolvido por via privada. Se viram como reféns.

No entanto, como é possível levantar a carreira de uma banda com mais de uma dezena de integrantes e seus diversos instrumentos pesados, cada um deles uma passagem aérea a mais de excesso de bagagem, diante de um ecossistema aéreo que, assim como a sociedade brasileira, ignora que o músico é um operário, que fazer arte é um ofício, tornando inacessível até mesmo o deslocamento até o local de trabalho? A ignorância diante do fazer cultural chega a tal ponto, talvez por acreditarem se tratar de mero hobbie. Apenas instrumentos – e não instrumentos DE TRABALHO.

À época dessa conversa, refleti bastante e cheguei até a cogitar não participar de outras concorrências públicas, em especial no FAC-DF: tentar resolver o problema através da iniciativa privada e do próprio investimento. Mas isso realmente é fazer milagre. Hoje, eu diria ao meu companheiro de carreira que ele está redondamente enganado: por uma circunstância específica, infelizmente dependemos de fomento direto do Estado, e seguiremos não emancipados por anos a fio ainda, até que se crie um ecossistema plausível para o desenvolvimento da atividade cultural. 

Nessa linha, o artigo da semana traz mais questionamentos – como será de praxe – do que soluções. A dependência do setor cultural de apoio do Estado, em especial no caso do Brasil, é intransponível. Sem o apoio das estruturas de governo, seja pelo investimento, seja pela implementação de políticas públicas e ações estruturantes, deixar a Cultura ao próprio destino seria largar na selva um pássaro recém-nascido, ainda miúdo e dependente da mãe. Quantos sobreviveriam?

No fim das contas: é circunstancial e necessário – no momento, vital – o acolhimento, apoio e investimento do Estado na Cultura. Ao meu colega, eu diria: não há que se sentir culpado. Ao contrário, é importante entender como os escassos instrumentos que já existem, a exemplo dos fundos e leis de incentivo fiscal, podem ser utilizados, para assim evoluir em um ecossistema estruturado, que tornará comum a possibilidade de viver bem de Cultura.

Na semana que vem, já com os vislumbres da relação entre Cultura e Estado, trataremos mais a fundo sobre conceitos da filantropia, conceituação do terceiro setor e a história do Mecenato.

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Avante e até breve.